RITOS CORPORAIS ENTRE
OS SONACIREMA
Horace Miner
In: A.K.
Rooney e P.L. de Vore (orgs)
YOU AND THE
OTHERS - Readings in Introductory Anthropology
(Cambridge, Erlich)
1976
O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas
de comportamento que diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que
é incapaz de surpreender-se mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato,
se nem todas as combinações logicamente possíveis de comportamento foram ainda
descobertas, o antropólogo bem pode conjeturar que elas devam existir em alguma
tribo ainda não descrita.
Deste ponto de vista,
as crenças e práticas mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão inusitados
que parece apropriado descrevê-los como exemplo dos extremos a que pode chegar
o comportamento humano. Foi o Professor Linton, em 1936, o primeiro a chamar a
atenção dos antropólogos para os rituais dos Sonacirema, mas a cultura desse
povo permanece insuficientemente compreendida ainda hoje.
Trata-se de um grupo
norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e os
Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe sobre sua
origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a mitologia dos
Sonacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem à sua nação; ele é, por outro lado, conhecido
por duas façanhas de força: ter atirado um colar de conchas, usado pelos
Sonacirema como dinheiro, através do rio Po- To- Mac e ter derrubado uma
cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade.
A cultura dos Sonacirema caracteriza-se por uma economia de
mercado altamente desenvolvida, que evolui em um rico habitat. Apesar do povo
dedicar muito do seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos
frutos deste trabalho e uma considerável porção do dia são dispensados em atividades rituais. O foco destas
atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde surgem como o interesse
dominante no ethos deste povo. Embora tal tipo de interesse não seja, por
certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a eles associadas são
singulares.
A crença fundamental
subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e
que sua tendência natural é para a
debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é
desviar estas características através do uso das poderosas influências do
ritual e do cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este
propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários
em suas casas e, de fato, a alusão à
opulência de uma casa, muito freqüentemente, é feita em termos do número de
tais centros rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira,
toscamente pintadas, mas as câmeras de culto das mais ricas têm paredes de
pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas, aplicando placas de
cerâmica às paredes de seu santuário.
Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários,
os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias
privadas e secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as
crianças e, neste caso, somente durante o período em que estão sendo iniciadas
em seus mistérios. Eu pude, contudo, estabelecer contato suficiente com os
nativos para examinar estes santuários e obter descrições dos rituais.
O ponto focal do
santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Neste cofre são guardados os
inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita que
poderia viver. Tais preparados são conseguidos através de uma serie de
profissionais especializados, os mais poderosos dos quais são os
médicos-feiticeiros, cujo auxilio deve ser recompensado com dádivas
substanciais. Contudo, os médicos-feiticeiros não fornecem a seus clientes as
poções de cura; somente decidem quais devem ser seus ingredientes e então os
escrevem em sua linguagem antiga e secreta. Esta escrita é entendida apenas
pelos médicos-feiticeiros e pelos ervatários, os quais, em troca de outra
dadiva, providenciam o encantamento necessário. Os Sonacirema não se desfazem
do encantamento após seu uso, mas os colocam na caixa-de-encantamento do
santuário doméstico. Como tais substâncias mágicas são especificas para certas
doenças e as doenças do povo, reais ou imaginárias, são muitas, a caixa-de-encantamentos
está geralmente a ponto de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos
que as pessoas esquecem quais são suas finalidades e temem usá-los de novo.
Embora os nativos sejam muito vagos quanto a este aspecto,
só podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as velhas
substâncias é a idéia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, em frente
à qual são efetuados os ritos corporais, irá, de alguma forma, proteger o
adorador.
A baixo da
caixa-de-encantamentos existe uma pequena pia batismal. Todos os dias cada
membro da família, um após o outro, entra no
santuário, inclina sua fronte ante a caixa-de-encantamentos, mistura
diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal e procede a um breve rito de
ablução. As águas sagradas vêm do Templo
da Água da comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para
tornar o líquido ritualmente puro.
Na hierarquia dos
mágicos profissionais, logo abaixo dos médicos-feiticeiros no que diz respeito
ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode ser traduzida por
"sagrados-homens-da-boca". Os Sonacirema têm um horror quase que
patológico, e ao mesmo tempo fascinação, pela cavidade bucal, cujo estado
acreditam ter uma influência sobre todas as relações sociais.
Acreditam que, se não
fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam, seus amigos os abandonariam e
seus namorados os rejeitariam. Acreditam também na existência de uma forte relação entre as
características orais e as morais: Existe, por exemplo, uma ablução ritual da
boca para as crianças que se supõe
aprimorar sua fibra moral.
O ritual do corpo
executado diariamente por cada um dos Sonacirema inclui um rito bucal. Apesar de serem tão
escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática que choca o
estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo revoltante. Foi-me relatado
que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na
boca juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo então numa série de
gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas
procuram o mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano. Estes
profissionais têm uma impressionante
coleção de instrumentos, consistindo de brocas, furadores, sondas e aguilhões.
O uso destes objetos no exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente,
uma tortura ritual quase inacreditável.
O sacerdote-da-boca abre a boca do cliente e, usando os instrumentos
acima citados, alarga todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido
nos dentes. Nestas cavidades são colocadas substâncias mágicas. Caso não
existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são
extirpadas para que a substância natural
possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações
é tolher a degeneração e atrair amigos.
O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato de
os nativos voltarem ao sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de
seus dentes continuarem a degenerar.
Esperemos que quando for realizado um estudo completo dos
Sonacirema haja um inquérito cuidadoso sobre a estrutura da personalidade
destas pessoas, Basta observar o fulgor nos olhos de um sacerdote-da- boca,
quando ele enfia um furador num nervo exposto, para se suspeitar que este rito
envolve certa dose de sadismo. Se isto puder ser provado, teremos um modelo
muito interessante, pois a maioria da população demonstra tendências
masoquistas bem definidas.
Foi a estas
tendências que o Prof. Linton (1936) se referiu na discussão de uma parte
específica dos ritos corporal que é desempenhada apenas por homens. Esta parte
do rito envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento
afiado. Ritos especificamente femininos
têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que lhes
falta em freqüência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimônia, as
mulheres usam colocar suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O
aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser
preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos.
Os
médicos-feiticeiros têm um templo imponente, ou latipsoh, em cada comunidade de
certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de
pacientes muito doentes, só podem ser executadas neste templo. Estas cerimônias
envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com
roupas e toucados específicos, movimentam-se serenamente pelas câmaras do
templo.
As cerimonias
latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma boa proporção de nativos
realmente doentes que entram no templo se recuperem. Sabe-se que as crianças
pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às tentativas de levá-las ao templo, porque
"/é lá que se vai para morrer/". Apesar disto, adultos doentes não
apenas querem mas anseiam por sofrer os prolongados rituais de purificação,
quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante
ou quão grave seja a emergência, os guardiões de muitos templos não admitirão um cliente se ele
não puder dar uma dádiva valiosa para a
administração. Mesmo depois de ter-se conseguido a admissão, e sobrevivido às
cerimônias, os guardiães não permitirão ao neófito abandonar o local se ele não
fizer outra doação.
O suplicante que
entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida
cotidiana os Sonacirema evita a exposição de seu corpo e de suas funções
naturais. As atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos
corporais, são realizados apenas no segredo do santuário doméstico. Da perda
súbita do segredo do corpo quando da entrada no latipsoh, podem resultar
traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa nunca o viu em um ato
excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto executa
suas funções naturais num recipiente sagrado. Este tipo de tratamento
cerimonial é necessário porque os excreta são usados por um adivinho para
averiguar o curso e a natureza da enfermidade do cliente. Clientes do sexo feminino,
por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e
aguilhadas dos médicos-feiticeiros.
Poucos suplicantes no
templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de jazer em
duros leitos. As cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote-da-boca,
envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual as vestais despertam seus
miseráveis fardos a cada madrugada e os rolam em seus leitos de dor enquanto
executam abluções, com os movimentos formais nos quais estas virgens são
altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões mágicos na boca do
suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe serem curativas.
De tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus
clientes e espeta agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que
estas cerimônias do templo possam não curar, e possam mesmo matar o neófito,
não diminui de modo algum a fé das pessoas no médico feiticeiro.
Resta ainda um outro tipo de profissional, conhecido como um
"ouvinte". Este "doutor-bruxo" tem o poder de exorcizar os
demônios que se alojam nas cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os Sonacirema
acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos; particularmente, teme-se
que as mães lancem uma maldição sobre as crianças enquanto lhes ensinam os
ritos corporais secretos. A contra-magia do doutor bruxo é inusitada por sua
carência de ritual. O paciente simplesmente conta ao "ouvinte" todos
os seus problemas e temores, principalmente pelas dificuldades iniciais que
consegue rememorar. A memória demonstrada pelos Sonacirema nestas sessões de
exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum um paciente deplorar a
rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser desmamado, e uns poucos indivíduos
reportam a origem de seus problemas aos feitos traumáticos de seu próprio
nascimento.
Como conclusão,
deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na estética
nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e suas funções.
Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes
cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para
tornar maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná-los menores
quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no
fato de a forma ideal estar virtualmente além da escala de variação humana.
Umas poucas mulheres, dotadas de um desenvolvimento hipermamário quase inumano,
são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em
cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa,
contemplarem-nos.
Já fizemos referência
ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas
ao segredo. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas.
O intercurso sexual é tabu enquanto assunto, e
é programado enquanto ato. São feitos esforços para evitar a gravidez,
pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso sexual a certas
fases da lua. A concepção é na realidade, pouco freqüente. Quando grávidas as
mulheres vestem-se de modo a esconder o estado. O parto tem lugar em segredo,
sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus
rebentos.
Nossa análise da vida
ritual dos Sonacirema certamente demonstrou ser este povo dominado pela crença
na magia. É difícil compreender como tal povo conseguiu sobreviver por tão
longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo. Mas até costumes tão exóticos
quanto estes aqui descritos ganham seu real significado quando são encarados sob
o ângulo relevado por Malinowski, quando escreveu:
"Olhando de
longe e de cima de nossos altos postos de segurança na civilização
desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância da magia. Mas sem
seu poder de orientação, o homem primitivo não poderia ter dominado, como o
fêz, suas dificuldades práticas, nem poderia ter avançado aos estágios mais
altos da civilização".
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